Da pele alva ao negro carvão: antropofagias de um corpo mestiço
*** Crítica vencedora do Concurso Estadual de Estímulo a Crítica de Artes da Fundação Cultural do Estado da Bahia/ 2012**
segundo lugar na Categoria Dança, sobre espetáculo "Para o herói: experimentos sem nenhum caráter", de Paula Carneiro
>>> por Laura Pacheco · abril/2012
Um foco ilumina o extenso papel branco que atravessa o palco como um tapete de letras negras escritas com carvão. Um corpo feminino, de pele alva, debruça-se numa escrita incansável que parece não ter fim. Seria a metáfora de sua própria história? Imagens-rascunho, escritas em processo, esboços de um corpo-tela pictórico, “carvão tatuado num papel-branco-pele”. Um disparo de idéias em movimento onde corpo, imagem e palavra configuram uma consistente proposta dramatúrgica.
Num diálogo direto com a obra literária Macunaíma, de Mário de Andrade, uma das principais representantes da literatura brasileira, o espetáculo de dança contemporânea Para o herói: experimentos sem nenhum caráter, de Paula Carneiro, impressiona pela potencialidade crítica, sensível e poética que atinge. Sem a pretensão de fazer uma tradução da obra de Mário, de 1928, revisita a escrita moderna de um dos maiores expoentes da Semana da Arte Moderna de 22, propondo um diálogo, um lapso contemporâneo, um mergulho reflexivo sobre corpo e identidade, história e cultura, memória e representação.
Contemplado em 2010 pelo Edital Quarta que Dança, da Fundação Cultural do Estado da Bahia, o espetáculo alcançou visibilidade internacional em 2011 em um dos principais festivais internacionais de dança contemporânea da Europa: o Move Berlim. Ganhou o Prêmio Klauss Vianna 2011 e fará turnê nacional por diversas capitais brasileiras. Sem dúvida, é uma das pérolas da produção contemporânea de dança na Bahia.
A artista aponta para uma perspectiva crítica da obra de Mário de Andrade, metaforizando em seu corpo a figura de Macunaíma: um corpo mestiço, borrado, autofágico, híbrido por excelência. Na obra literária, é ele quem encarna o processo antropofágico moderno ao condensar as múltiplas identidades brasileiras, cheio de contradições e sobreposições. Nasce preto, é criado numa tribo de índios na Amazônia, sai para São Paulo, vira branco, bicho, coisa, máquina; uma figura mutante da literatura brasileira, que, por sua versatilidade é considerado “o herói sem nenhum caráter”.
O caráter híbrido desse herói aparece também na opção estética do espetáculo de Paula Carneiro, bem como no próprio título de sua obra, Experimentos sem nenhum caráter, denotando o desprendimento a categorizações rígidas num trabalho artístico que se situa entre dança, performance, literatura e artes visuais.
Da escrita no papel à imagem borrada que tatua o corpo nu, a artista faz de seu corpo a própria tela pictórica a imprimir imagens de uma literatura rascunhada. Com uma movimentação peculiar que nos remete ao butoh, à dança contemporânea e a certas manifestações regionais da Bahia como nego fugido e o candomblé, a artista despe-se e põe-se a transfigurar, multiplicando-se em oníricas imagens: menina, mulher, mãe, bicho, jovem, velha, índia, orixá, negra, tupinambá. Em seu corpo, atravessam e co-habitam tantas outras identidades, papéis, representações. É nele que dá o reconhecimento e o estranhamento da própria língua, da própria fala, do próprio corpo, da própria cultura.
Longe de seguir uma lógica tradicional de composição coreográfica baseada em passos de dança, a artista parece estar mais interessada em investigar estados corporais e ações produtoras de imagens que se metamorfoseiam na relação com o ambiente. Assim, configura seu próprio percurso antropofágico no espaço cênico, onde uma ação contém a outra, acumulando resíduos e transformando-se simultaneamente em novos signos e códigos artísticos.
A trilha sonora reforça os deslocamentos culturais advindos de vozes européias que, ao falarem português em diferentes sotaques - francês, basco, italiano - debruçam-se na leitura de Macunaíma, bem como nas palavras regionais e populares que povoam a obra literária. Nesta proposta, Paula inverte a relação entre colonizador e colonizado: agora é o olhar estrangeiro europeu que se põe a compreender uma versão brasileira da história, ainda que poética e artística, em terras tupiniquins.
Um espetáculo de contrates, fluxos e sobreposições sígnicas, onde o escrito e o falado, o borrado e o tatuado, deslocam-se no tempo e no espaço. Num permanente exercício de ação e reflexão, a artista nos coloca inúmeras questões: como (re)escrevemos nossa história? Como acessamos nossas memórias? Que papéis assumimos entre tantas possíveis identidades brasileiras? Haveria fronteiras entre corpo e ambiente, natureza e cultura, identidade e nação?
Ao fim da saga, vence o nosso herói-anti-herói: num grito sem som, Paula lança-se numa gargalhada muda, um tremor de gozo contorcido, uma carta de alforria. Tantos papéis em um só corpo. Tantos corpos em um só papel. Um diálogo rico em que dança e literatura se retroalimentam em obras nunca acabadas, obras sem nenhum caráter. Uma homenagem endereçada a Macunaíma, ou ainda, aos tantos heróis de nossa gente.
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segundo lugar na Categoria Dança, sobre espetáculo "Para o herói: experimentos sem nenhum caráter", de Paula Carneiro
>>> por Laura Pacheco · abril/2012
Um foco ilumina o extenso papel branco que atravessa o palco como um tapete de letras negras escritas com carvão. Um corpo feminino, de pele alva, debruça-se numa escrita incansável que parece não ter fim. Seria a metáfora de sua própria história? Imagens-rascunho, escritas em processo, esboços de um corpo-tela pictórico, “carvão tatuado num papel-branco-pele”. Um disparo de idéias em movimento onde corpo, imagem e palavra configuram uma consistente proposta dramatúrgica.
Num diálogo direto com a obra literária Macunaíma, de Mário de Andrade, uma das principais representantes da literatura brasileira, o espetáculo de dança contemporânea Para o herói: experimentos sem nenhum caráter, de Paula Carneiro, impressiona pela potencialidade crítica, sensível e poética que atinge. Sem a pretensão de fazer uma tradução da obra de Mário, de 1928, revisita a escrita moderna de um dos maiores expoentes da Semana da Arte Moderna de 22, propondo um diálogo, um lapso contemporâneo, um mergulho reflexivo sobre corpo e identidade, história e cultura, memória e representação.
Contemplado em 2010 pelo Edital Quarta que Dança, da Fundação Cultural do Estado da Bahia, o espetáculo alcançou visibilidade internacional em 2011 em um dos principais festivais internacionais de dança contemporânea da Europa: o Move Berlim. Ganhou o Prêmio Klauss Vianna 2011 e fará turnê nacional por diversas capitais brasileiras. Sem dúvida, é uma das pérolas da produção contemporânea de dança na Bahia.
A artista aponta para uma perspectiva crítica da obra de Mário de Andrade, metaforizando em seu corpo a figura de Macunaíma: um corpo mestiço, borrado, autofágico, híbrido por excelência. Na obra literária, é ele quem encarna o processo antropofágico moderno ao condensar as múltiplas identidades brasileiras, cheio de contradições e sobreposições. Nasce preto, é criado numa tribo de índios na Amazônia, sai para São Paulo, vira branco, bicho, coisa, máquina; uma figura mutante da literatura brasileira, que, por sua versatilidade é considerado “o herói sem nenhum caráter”.
O caráter híbrido desse herói aparece também na opção estética do espetáculo de Paula Carneiro, bem como no próprio título de sua obra, Experimentos sem nenhum caráter, denotando o desprendimento a categorizações rígidas num trabalho artístico que se situa entre dança, performance, literatura e artes visuais.
Da escrita no papel à imagem borrada que tatua o corpo nu, a artista faz de seu corpo a própria tela pictórica a imprimir imagens de uma literatura rascunhada. Com uma movimentação peculiar que nos remete ao butoh, à dança contemporânea e a certas manifestações regionais da Bahia como nego fugido e o candomblé, a artista despe-se e põe-se a transfigurar, multiplicando-se em oníricas imagens: menina, mulher, mãe, bicho, jovem, velha, índia, orixá, negra, tupinambá. Em seu corpo, atravessam e co-habitam tantas outras identidades, papéis, representações. É nele que dá o reconhecimento e o estranhamento da própria língua, da própria fala, do próprio corpo, da própria cultura.
Longe de seguir uma lógica tradicional de composição coreográfica baseada em passos de dança, a artista parece estar mais interessada em investigar estados corporais e ações produtoras de imagens que se metamorfoseiam na relação com o ambiente. Assim, configura seu próprio percurso antropofágico no espaço cênico, onde uma ação contém a outra, acumulando resíduos e transformando-se simultaneamente em novos signos e códigos artísticos.
A trilha sonora reforça os deslocamentos culturais advindos de vozes européias que, ao falarem português em diferentes sotaques - francês, basco, italiano - debruçam-se na leitura de Macunaíma, bem como nas palavras regionais e populares que povoam a obra literária. Nesta proposta, Paula inverte a relação entre colonizador e colonizado: agora é o olhar estrangeiro europeu que se põe a compreender uma versão brasileira da história, ainda que poética e artística, em terras tupiniquins.
Um espetáculo de contrates, fluxos e sobreposições sígnicas, onde o escrito e o falado, o borrado e o tatuado, deslocam-se no tempo e no espaço. Num permanente exercício de ação e reflexão, a artista nos coloca inúmeras questões: como (re)escrevemos nossa história? Como acessamos nossas memórias? Que papéis assumimos entre tantas possíveis identidades brasileiras? Haveria fronteiras entre corpo e ambiente, natureza e cultura, identidade e nação?
Ao fim da saga, vence o nosso herói-anti-herói: num grito sem som, Paula lança-se numa gargalhada muda, um tremor de gozo contorcido, uma carta de alforria. Tantos papéis em um só corpo. Tantos corpos em um só papel. Um diálogo rico em que dança e literatura se retroalimentam em obras nunca acabadas, obras sem nenhum caráter. Uma homenagem endereçada a Macunaíma, ou ainda, aos tantos heróis de nossa gente.
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